OPINIÃO

Cidades que se educam

O interessante, além disso, é quando as cidades (no plural) podem se educar mutuamente

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Cadastrado por

JC

Publicado em 30/04/2024 às 5:00
Notícia

A ideia de que uma cidade pode se tornar “educadora” não é tão recente assim: desde as “Cinco Memórias Sobre a Instrução Pública” de Condorcet (1789), que a noção de “educação nacional”, como forma de produzir uma noção de pertencimento a Nação, quer dizer, de construir um “sentimento” (subjetivo) nacional através do culto a heróis nacionais, cânticos patrióticos, hinos, nomes de logradouros, etc. Mais recentemente, a ideia foi bem além de sua inspiração original “nacionalista” e passou a pensar a cidade como um conjunto de equipamentos culturais (teatro, praças, cinemas, museus, sítios históricos, patrimônios...) capaz de oferecer, não exatamente um sentido de “pertencimento”, mas o acesso a uma cultura comum, à construção de uma memória coletiva (inclusive com suas tragédias e desastres humanos!) fornecendo-nos um “passado”, sem o quê, produzimos uma desastrosa ruptura no tempo (o que já está acontecendo, aliás!): sem passado e sem futuro, mordemos, em círculo, a cauda do presente.

O interessante, além disso, é quando as cidades (no plural) podem se educar mutuamente. Recife é CIDADE IRMÃ de Nantes (França) há muitos anos e o acordo de “irmandade” foi renovado sob a batuta de meu amigo Ricardo Mello, Secretário de Cultura do Recife. Ricardo, em mensagem que me enviou, após seu retorno daquela cidade francesa (o Recife acolheu em Janeiro uma delegação “nantaise”), disse: “Estabelecendo bases como o combate às desigualdades e a sustentabilidade em suas múltiplas vertentes, como um olhar dirigido às questões climáticas, de gênero e da cultura, co-criamos um ambiente de construções possíveis, viabilizando soluções por meio de experimentações e diálogo. (...) Recife e Nantes celebram muito mais do que um encontro entre cidades parceiras: elas nos levam ao encontro de um lugar-espaço desejado, como o ‘realismo esperançoso’ de Ariano: oportunidades, respeito, garantia de direitos, inclusive o direito de acreditar e de fazer acontecer”.

Ricardo visitou um bairro periférico de Nantes, Breil, cotejado com os conhecidos problemas das periferias das grandes cidades francesas, como a imigração, a pobreza e a desigualdade de oportunidades, a inferiorização cultural..., mesmo numa sociedade de forte tradição republicana (quanto às nossas “periferias” ou a nossa “tradição republicana”, eu prefiro pular esse item: este artigo tem limites!). O fato é que está sendo selado acordos, entre essas duas cidades, que envolvem diversas políticas públicas, especialmente políticas culturais e educativas em que a ideia -“recifense”- das Praças de Cultura foi entusiasticamente recebida por aquela cidade francesa, além de estabelecer um regime de trocas culturais baseado no sistema de “residência cultural” entre grupos e indivíduos.

Sim, leitor, a educação não é apenas uma relação inter, trans ou intrageracional: ela é a abertura de uma possibilidade, sempre incerta, claro: a de que eu possa ver, a mim mesmo (com perdão pela redundância!), com olhos que não são os meus e, a partir daí, poder estabelecer “rupturas” em nossas tradicionais e costumeiras formas de pensar e de oferecer “resultados”. Mais do que encontrar soluções novas, precisamos saber se estamos formulando corretamente nossos problemas, a partir de que princípios, de que categorias, de que interesses sociais.

Uma cidade que olha a outra, em seu mútuo interesse, separadas por um oceano, por uma história, por uma língua, por uma tradição... é muito mais do que, por exemplo, um Antropólogo que se muda para uma aldeia indígena, descobre coisas maravilhosas e insólitas e depois escreve um livro sobre os “Tristes Trópicos” (livro maravilhoso, aliás!): são instituições públicas que dialogam em função de um interesse comum: um Mundo propriamente humano e mutuamente educável!

Flávio Brayner é professor

Ricardo Mello é Secretário de Cultura do Recife

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