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Roberto Carlos no ano em que a Jovem Guarda saiu do ar

O Rei reinventou-se atento às mudanças do conturbado 1968

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 07/05/2018 às 18:31
foto: Arquivo Estadão Conteúdo
O Rei reinventou-se atento às mudanças do conturbado 1968 - FOTO: foto: Arquivo Estadão Conteúdo
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Ano favorabilíssimo para o Rei da Jovem Guarda, pois Júpiter ocupa a casa astral do amor, da felicidade, das artes e da alegria. Roberto pode contar também com o êxito e a tranquilidade que seu signo lhe promete para 1968”, previsões do mais popular astrólogo da época, para o mais popular dos cantores do País, do signo de Áries. Só no item “tranquilidade” ele não acertaria. 1968 foi o ano decisivo na carreira de Roberto Carlos. O programa que comandava, na TV Record, com Erasmo Carlos e Wanderléa, dava sinais de exaustão.

Depois do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, da contracultura, da psicodelia, a música pop não seria mais a mesma. Nela não cabiam mais as tolas canções de amor que os astros do iê-iê-iê entoavam nas adolescentes tardes de domingo. Em janeiro de 1968, Roberto Carlos se despedia do Jovem Guarda, que continuaria no ar comandado por Erasmo e Wanderléa. A última música que cantaria como integrantes do programa seria E Que Tudo Mais Vá Pro Inferno.

Com 27 anos, Roberto Carlos estava noivo (e de uma mulher desquitada e mãe de uma filha), não tinha mais o perfil de ídolo de “música jovem”. Os produtores da TV Record queimavam as pestanas para enquadra-lo em outro formato, para o público adulto. De início, Roberto Carlos faria dupla com Chico Anísio, no horário noturno, num programa, batizado de O Rei e Eu. Os dois não se afinaram, e o Rei acabou apresentando sozinho o Roberto Carlos à noite.

Outro problema a tirar a tranquilidade de RC e da CBS (atual Sony Music), sua gravadora, atendia pelo nome de Paulo Sérgio, o mais bem-sucedido dos seus imitadores. Paulo Sérgio surgiu de repente, por uma gravadora pequena, a Caravelle, com uma balada, Benzinho, que escalou as paradas no final de 1967. Empatou com Roberto Carlos e Eu Daria a Minha Vida (de Martinha), e chegou ao primeiro lugar exatamente quando O Rei abdicava do trono de rei do iê-iê-iê. Atropelou também outro ídolo jovem, Chico Buarque, bom vendedor de discos desde que A Banda (de 1966) se tornou um hit internacional.

Paulo Sérgio deixou Roberto Carlos para trás, exatamente quando ele lutava para se firmar no horário nobre, e o programa Jovem Guarda despencava no Ibope. Para não perder o reinado e a majestade, RC apelou. Pela primeira vez lançaria um álbum que não teria seu nome por título. Para não deixar dúvida que estava disposto a brigar, seu LP anual foi batizado de O Inimitável, um recado direto ao “imitador”, que por sinal era também capixaba, de Alegre (onde nasceu em 1944), a uma hora de distância da cidade natal de RC, Cachoeiro do Itapemirim.

BAGUNÇA

A Intervalo, a mais importante das revistas sobre TV na época, publicou desabafos de Erasmo Carlos e de Wanderléa sobre o fim iminente do Jovem Guarda, uma batata quente não apenas para eles, como também para o produtor Carlos Manga, o mais bem pago produtor da TV brasileira. “A verdade é que ninguém se sentiu bem com as modificações feitas no Jovem Guarda. Todos ali passando de um lado pro outro, o palco acabou em bagunça. O desinteresse dos artistas era total, depois o programa ficou praticamente seis domingos sem produção”, queixas do Tremendão à revista.

Os novos direcionamentos estéticos da cultura pop não defenestraram apenas a Jovem Guarda. Enquanto Erasmo e Wanderléa tentam segurar o programa, Ronnie Von, que dois anos antes ameaçava o reinado de Roberto Carlos, perdia o seu Pequeno Mundo de Ronnie, na TV Excelsior, substituído por Hoje Quem Paga Sou Eu, um programa de prêmios. Embora a bossa nova tivesse virado nosso mais sofisticado produto de exportação, com Frank Sinatra, “o maior cantor do mundo”, curvando-se antes ao Brasil dividindo um álbum com Antonio Carlos Jobim, outra vozes brasileiras, fora do País, quando muito, alcançavam a América Latina.

Porém, em de fevereiro de 1968, a Europa se rendia à nossa música. No então badalado festival de San Remo, na Itália, a canção vencedora foi Canzone Per Te, interpretada por Roberto Carlos. A volta do Rei foi comparável à consagração da gaúcha Ieda Maria Vargas, primeira brasileira a conquistar o concurso Miss Universo, em 1963. San Remo foi o passaporte para Roberto Carlos ingressar no universo musical para adultos.

A ida à Europa mexeu com a cabeça do cantor, o que se refletiu na música que gravaria para seu álbum anual. Nas letras ele persistia na canção de amor, sem sair muito do lugar comum. Na sonoridade, no entanto, mudou. O soul da Stax, de Aretha Franklin, Otis Redding, Wilson Pickett ganhara o mundo, e nele Roberto Carlos se inspirava. Seu cantar tornou-se mais agressivo, com guitarras mais pesadas, e metais. O Inimitável foi um divisor de águas na sua discografia.

Com o aval dos tropicalistas, que não apenas se derramavam em elogios às qualidade até então insuspeitas do Rei, como participariam do seu programa de TV, ele seria finalmente aceito pelos intelectuais (Glauber Rocha, um dos mais influente, foi exceção. Achava RC e sua turma “lixo cultural”). Pouco depois do final da Jovem Guarda, Roberto Carlos foi a Porto Alegre e causou espanto, ao se declarar hippie: “Não sou apenas a favor do movimento hippie: sou um deles. Também quero um mundo melhor, um mundo sem guerras, sem ódio, sem luta, cheio de paz, compreensão e felicidade”.

Na entrevista, concedida no Aeroporto Salgado Filho, na capital gaúcha, falou também em “som universal”, e elogiou o casal John & Yoko, que escandaliza com um nu frontal no álbum Two Virgins, proibido no Brasil, claro), e anunciou que iria fundar sua própria gravadora. Wanderléa e Erasmo Carlos demorariam mais um tempo para mudar de faixa. O barco da Jovem Guarda soçobrava, e os executivos da TV Record não depositavam mais esperança no programa.

Foi melancólica a última das jovens tardes de domingo. Um incêndio na TV Record, levou o programa a ser realizado no Teatro Paramount, muito grande para a quantidade de fãs que ainda queriam assisti-lo ao vivo. Na apresentação final do programa, Erasmo e Wanderléa, e até Carlos Manga, o diretor do JG, foram pegos de surpresa. Paulo Machado de Carvalho, o então presidente da TV Record simplesmente tirou o programa do ar. Foi substituído por Domingo Especial, com três horas de duração apresentado pelo hoje esquecido Hélio Ansaldo.

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