COLUNA TECNOLOGIA E INOVAÇÃO

O dilema salarial dos servidores e o risco do apagão tecnológico em Pernambuco

O que a "lei das consequências indesejadas" pode nos ensinar sobre a disputa salarial dos servidores de tecnologia com o governo de Pernambuco e os potenciais prejuízos para a população

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Guilherme Ravache

Publicado em 26/01/2022 às 19:41 | Atualizado em 26/01/2022 às 20:55
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Funcionários públicos e governos vivem um impasse em diversas regiões do país e nas mais x esferas de poder. De um lado, os servidores cada vez mais insatisfeitos com seus salários que não aumentam. Apenas em 2021, a inflação foi de 10%, o que significa perder 10% do poder de compra do salário. Há servidores há anos sem reajuste.

Na outra ponta, os governos que afirmam não ter condições de dar aumentos, já que estão no vermelho. Para a maior parte dos estados, municípios e o governo federal, aumentar os salários significa aumentar o rombo das contas públicas.

Em Pernambuco não é diferente. Veja o caso dos analistas de gestão do estado que trabalham na área de tecnologia da informação. A categoria está em negociação com o governo.

“Este ano completaremos 8 anos sem reajuste”, diz Fausto Feitosa, presidente da Associação dos Servidores de Tecnologia da Informação de Pernambuco. “E este é um ano eleitoral, se não fecharmos a negociação nas próximas semanas, ficará somente para a próxima gestão, daqui a um ou dois anos”. A estimativa da associação é que a defasagem salarial já esteja em torno de 54%.

Neste momento em que o mundo caminha rumo à digitalização e precisa cada vez mais de especialistas em tecnologia, Pernambuco vê uma crescente fuga destes profissionais do setor público.

“Desde 2006, após dois concursos públicos, 269 pessoas tomaram posse como analistas de gestão. Destes, somente 130 estão ativos e temos mais 1 servidor saindo, irá morar e trabalhar em Portugal”, afirma Fausto.

Risco de apagão dos serviços públicos

A fuga de talentos acelerou durante a pandemia na área de tecnologia, inicialmente no setor privado, mas cada vez mais no setor público. Com o crescimento do home office, muitos profissionais passaram a ocupar inclusive postos de trabalho no exterior, onde há crescente carência de profissionais de tecnologia. Em 2017, o JC já abordava a dificuldade do setor de tecnologia da informação de preencher cargos.

O boom das startups na América Latina em 2021 é outro complicador. Os investidores injetaram mais de R$ 100 bilhões na região, um recorde. Especialistas estimam que a América Latina abrirá 10 milhões de novas vagas de emprego em TI até 2025, impulsionadas tanto por empresas locais quanto pela crescente demanda de organizações estrangeiras que procuram talentos mais baratos nos mesmos fusos horários das empresas dos EUA – uma prática chamada “nearshoring”, como aponta reportagem do Rest of World.

Celso Agra há pouco mais de um ano pediu exoneração do posto de analista de gestão em Pernambuco e migrou para a iniciativa privada. “Meu pai e meu irmão trabalham no serviço público, quando entrei fazia sentido. Havia ainda a questão de trabalhar pela sociedade. Mas comecei a sentir necessidade de valorização”, lembra.

Antes de sair, para tentar melhorar a situação, Celso entrou na Associação dos Servidores de Tecnologia da Informação de Pernambuco e foi presidente dela. “Tentamos diversas articulações, sentávamos na mesa e nada andava. Chegou um ponto que ficou inviável e desisti”.

Seis meses após sair do serviço público para iniciativa privada, Celso recebeu uma nova proposta de trabalho. “O mercado está muito aquecido. Quando contei na empresa que tinha recebido uma proposta, eles mesmos disseram que era normal e que eu tinha portas abertas para retornar”, lembra.

Na prática, além de melhores benefícios como um plano de saúde melhor e um vale alimentação melhor, Celso mais que dobrou o salário em menos de um ano fora do serviço público.

“Eu nem saí para ganhar muito mais. Mas a diferença é que fora do setor público você é valorizado e pode crescer muito rápido”, diz Celso.

A lei das consequências indesejadas

A lei das consequências não intencionais (ou indesejadas), afirma que as ações das pessoas, e especialmente dos governos, sempre têm efeitos imprevistos ou "não intencionais". Economistas observam seus efeitos há séculos.

Em 1692, John Locke, o filósofo inglês e precursor dos economistas modernos, tentou barrar um projeto de lei parlamentar destinado a reduzir a taxa de juros máxima permitida de 6% para 4%. Locke argumentava que, em vez de beneficiar quem utilizava empréstimos, como era a ideia da lei para reduzir os juros, isso iria prejudicar a todos.

Para Locke, as pessoas encontrariam maneiras de burlar a lei, com os custos da evasão arcados pelos mutuários. Na medida em que a lei fosse obedecida, concluiu Locke, os principais resultados seriam menos crédito disponível e uma redistribuição de renda para longe de "viúvas, órfãos e todos aqueles que têm suas propriedades em dinheiro".

Mas como isso se aplica a Pernambuco e à questão salarial dos servidores da área de tecnologia?

Basicamente, a tecnologia quando funciona é como mágica, você dificilmente irá notá-la. E isso joga contra os servidores do setor. Hospitais, polícia e serviços básicos sempre parecem mais urgentes e necessários para a população. Nas mesas de negociação, isso aumenta a tendência de que os aumentos venham antes para estas categorias com mais “visibilidade”.

Além disso, diferentemente do setor de tecnologia, as demais categorias também tendem a ser mais numerosas, o que aumenta a pressão sobre o governo.

O problema é que o uso da tecnologia, que já era intenso, foi acelerado pela pandemia. No setor público, o movimento foi ainda mais forte à medida que repartições e uma série de espaços públicos essenciais se viram forçados a fechar as portas.

Hoje, dificilmente qualquer serviço público pode deixar de funcionar sem tecnologia. Ou seja, quanto menos o governo investe na digitalização, piores (e mais caros) tendem a se tornar todos os demais serviços.

Muitos imaginam que seja fácil apenas trocar esses servidores por empresas privadas. Mas não é tão simples. Primeiro, a alta rotatividade de talentos também acontece nos prestadores de serviço do governo. Depois, é importante lembrar que os servidores são responsáveis pela gestão dos projetos, além de e especialistas no funcionamento da máquina pública e na integração de diferentes setores.

Privatizar toda a área de tecnologia sem supervisão de especialistas é um convite para os abusos. As chances do aumento dos custos serem ainda maiores que um ajuste salarial da categoria são altas.

A lei das consequências indesejadas na prática

O Governo de Pernambuco, por meio da Secretaria de Administração do Estado, informou por meio de nota que as medidas de valorização de pessoal para o exercício de 2022 estão sendo negociadas na Mesa Geral de Negociação, composta por representantes do Governo e pelos sindicatos dos servidores.

O Governo adianta que a ideia é conceder um valor nominal, que futuramente poderá ser incorporado ao vencimento base, por nível de escolaridade para ingresso nas carreiras, como forma de diminuir as diferenças salariais entre os menores e os maiores salários.

Pela nota do Governo se observa que a intenção é boa, mas tende apenas a piorar a disparidade salarial dos funcionários de tecnologia frente ao setor privado. O profissional de tecnologia não compara seu salário ao dos demais servidores, mas sim ao que o mercado oferece.

Ou seja, ao tentar equalizar os salários das categorias e ignorar o mercado, Pernambuco cai na armadilha das consequências indesejadas. Ao invés de otimizar por meio da tecnologia a máquina pública, torna todo o estado menos eficiente e aumenta o risco de um apagão tecnológico.

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