CRIME

Justiça manda soltar 14 acusados de furto e venda de armas da Polícia Civil, no Recife

Decisão foi tomada pela Justiça porque o Ministério Público excedeu o prazo de análise de celulares dos acusados. Eles vão usar tornozeleiras

Raphael Guerra
Cadastrado por
Raphael Guerra
Publicado em 09/11/2022 às 11:27 | Atualizado em 09/11/2022 às 19:38
BRUNO CAMPOS / JC IMAGEM
CRIMES Peculato, corrupção e comércio ilegal de arma serão investigados - FOTO: BRUNO CAMPOS / JC IMAGEM
Leitura:

Um ano e três meses após a operação que prendeu acusados de furto e venda de centenas de armas de fogo e milhares de munições que estavam sob a responsabilidade da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil, na área central do Recife, 14 pessoas, incluindo três policiais civis, foram soltos nesta quarta-feira (09). 

A decisão foi tomada pela Justiça, que considerou que o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) excedeu os prazos para análise de 35 aparelhos celulares dos presos, ou seja, atrasou o andamento do processo. Por causa da diligência, necessária aos autos, as audiências de instrução e julgamento haviam sido interrompidas em maio deste ano.

A análise dos celulares deveria ter sido concluída no último mês de outubro, conforme prazo prometido pelo MPPE. 

A coluna Ronda JC teve acesso à decisão judicial que determinou a liberdade dos presos e ao parecer do MPPE. 

"Todos os prazos razoáveis já foram dilatados por este colegiado (de juízes) a fim de que a prova fosse juntada de modo a permitir a continuação da instrução processual, o que foi feito dada a gravidade e a complexidade do processo, assim também para que fossem resguardadas a segurança estatal e a ordem pública, como já se falou por diversas vezes", pontuou a decisão judicial.

"Dessa maneira, tem-se que a tramitação do presente feito está excedendo os limites legais, pois desde a última audiência realizada até a presente data já se passaram mais de seis meses, e muito embora o Ministério Público tenha requerido e informado prazo para produção probatória não o cumpriu e os acusados, em sua maioria, continuam presos preventivamente. Tal fato fere o princípio da razoabilidade", destacou a decisão. 

Ganharam a liberdade:

1 - Cleidio Graf Gonçalves Torreiro (comissário da Polícia Civil)

Apontado pelos investigadores como “o grande mentor/articulador” de todo o esquema de desvio de armas, munições e acessórios. Detinha acesso irrestrito à armaria da Core. “Sem qualquer justificativa, frequentava aos sábados e domingos a armaria. Manipulava planilhas com a inserção e supressão de dados. Utilizava intermediários na comercialização”, pontuou relatório da Polícia Civil. Ainda teria adquirido casa de veraneio e automóvel em nomes das filhas.

2 - José Maria Sampaio Filho (comissário da Polícia Civil)

Foi reconhecido por uma testemunha por ter, em três momentos, “repassado grande quantidade de munição comercializada, que se destinou a uma facção criminosa. Numa operação da polícia, em agosto, para cumprir mandados de prisão contra os investigados, o policial foi flagrado na posse irregular de uma arma de fogo calibre 9mm sem registro.

3 - Josemar Alves dos Santos (comissário da Polícia Civil)

Investigação apontou que ele auxiliava Cleidio no desvio das armas, munições e acessórios, manipulando as informações em planilhas no setor administrativo.

Os outros são: Renato Rodrigues de Andrade, Victor Clemente Sette de Oliveira Carvalho Júnior, Adriano José da Silva, Wanderson Moisés de França, Geraldo Domingos da Costa Neto, Cristiano Antônio Canuto, Rodrigo Freire de Brito, Gerllicley Cecílio Alves Gomes, Idemburgo Antônio da Silva Júnior, Genilson Ricardo Ferreira e Bruno Alexandre Silva da Costa. Eles teriam envolvimento na venda e compra das armas e munições desviadas da Core. 

Apesar da liberdade, a decisão judicial pontuou que há "prova da materialidade e indícios de autoria, bem como a gravidade dos crimes imputados aos acusados", por isso medidas cautelares devem ser aplicadas. Desta forma, todos vão usar tornozeleira eletrônica. 

Em nota, o MPPE afirmou que não é culpado pelo atraso do processo e que a intenção, ao solicitar a análise dos celulares, era de "reverter inconsistências em fases anteriores da investigação", que estava sob a responsabilidade da Polícia Civil.

"É função da Polícia Civil proceder à análise do material e incluir no inquérito um relatório dos elementos de prova. Tal providência não foi adotada no processo criminal", disse o MPPE, em nota.

"Diante dessa lacuna na condução do inquérito policial, a 14ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital requisitou, já na etapa de instrução processual, o apoio técnico do Gaeco/MPPE para extração dos dados dos celulares apreendidos. No entendimento da 14ª Promotoria, o acesso a essas informações, em conjunto com os testemunhos já colhidos, é importante para o êxito da etapa seguinte da instrução criminal, que é o interrogatório dos acusados", continuou o texto.

Procurada, a Polícia Civil de Pernambuco não se pronunciou.

O PARECER DO MPPE

Parecer do colegiado de promotores de Justiça que acompanha o processo, na semana passada, opinou favoravelmente pela soltura dos presos e reconheceu o excesso de prazo. 

"Anteriormente este Órgão Ministerial manifestou-se pela negativa da revogação da prisão preventiva por excesso de prazo, em razão da complexidade do caso concreto. Todavia, passado o prazo estipulado sem que tenha sido possível realizar um relatório de análise dos dados brutos (dos celulares apreendidos) e sem que haja previsão de quando será possível entregar a diligência, entende agora, à luz do princípio da razoabilidade, pela revogação da prisão preventiva."

ENTENDA O CASO

O sumiço das armas foi descoberto por um comissário da Polícia Civil, responsável pela manutenção e conserto delas, em janeiro de 2021, logo após ele voltar de férias. Na ocasião, um inquérito policial foi instaurado e uma auditoria foi realizada pra identificar o número exato do desvio. Em agosto do mesmo ano, após uma operação que prendeu cinco policiais civis suspeitos de envolvimento no esquema criminoso, a chefia da Polícia Civil fez uma coletiva de imprensa e anunciou o número de 326 armas subtraídas.

Mas não foi bem assim, como mostra o documento assinado pelo delegado Adelson Barbosa em fevereiro de 2021, ou seja, seis meses antes. Na época, Barbosa estava lotado na Core.

Documento interno da corporação, assinado pelo delegado, apontou que 1.131 armas - entre metralhadoras, pistolas e revólveres - desapareceram da delegacia. A revelação foi feita com exclusividade pela coluna Ronda JC

Em abril de 2022, durante audiência de instrução e julgamento do caso, o delegado prestou depoimento por videoconferência e, questionado pelo Ministério Público, confirmou que mais de 1 mil armas foram furtadas da Core.

No depoimento, o delegado disse ainda que foi repassada à Polícia Federal a lista das armas subtraídas para que os dados fossem incluídos no Sinarm (Sistema Nacional de Armas), do Ministério da Justiça.

A coluna Ronda JC procurou a Polícia Federal, que confirmou o recebimento do ofício mencionado pelo delegado, com data de 24 de fevereiro de 2021.

"Confirmamos o envio da relação das armas pelo Core no dia 24.02.2021. E até agora não houve o registro de recuperação de nenhuma arma citada na relação enviada. Esse monitoramento é feito com informação enviadas pelas Secretarias de Defesa Social dos Estados", informou a PF.

Desde que o sumiço foi descoberto, o número de armas de fogo furtadas é uma incógnita. Até mesmo para autoridades que acompanham o processo (como promotores de Justiça) e advogados de defesa dos 19 acusados de envolvimento no esquema criminoso (Eram 20, mas um policial veio a falecer dias após ser preso).

Apesar da relevância, no inquérito, com mais de 1,9 mil páginas, não consta a informação da quantidade de armas desviadas da Core. O número também não é informado no processo encaminhado pelo Ministério Público à Justiça.

Os delegados Guilherme Caraciolo e Cláudio Castro, responsáveis pela investigação, foram questionados durante seus depoimentos em audiência de instrução e julgamento. Ambos disseram que não lembravam do número.

AS INVESTIGAÇÕES

As armas de fogo ficavam guardadas em um depósito de acesso muito restrito na Core. Além delas, mais de 3 mil munições também foram furtadas. Logo após a descoberta do sumiço, uma perícia foi realizada e não foram encontrados sinais de arrombamento.

Por uma falha grave de segurança, no interior do setor de armaria não havia câmeras. Mas havia uma do lado de fora, apontada justamente para a porta de entrada. Foi descoberto, no entanto, que o equipamento não funcionava 24 horas por dia.

WILDERSON PIMENTEL/SECOM IPOJUCA
SUMIÇO Doadas pela Polícia Rodoviária federal para a Prefeitura de Ipojuca, pistolas foram desviadas da Core - WILDERSON PIMENTEL/SECOM IPOJUCA

Entre as armas desviadas, 119 pertenciam à Guarda Municipal de Ipojuca, no Grande Recife. Elas estavam guardadas na Core enquanto os profissionais passavam por treinamento. As pistolas haviam sido doadas pela Polícia Rodoviária Federal.

Em depoimento à polícia, ainda em janeiro de 2021, um detento revelou que, anos antes, havia se dirigido à Core para comprar munições destinadas a uma facção criminosa - indicando aos delegados que a prática ilegal não era recente na unidade policial. O vendedor teria sido justamente um dos policiais civis que acabou indiciado ao final da investigação.

Outros depoimentos colhidos pela polícia revelaram a suposta ligação de comissários da Core com criminosos. A venda de munições e carregadores de pistolas seria prática comum e antiga. Uma caixa com 50 munições era vendida por R$ 350, revelam depoimentos.

Interceptações telefônicas também apontaram que armas desviadas da Core foram comercializadas para facções criminosas por valores que variavam de R$ 6,3 mil a 6,5 mil, cada uma. Já as submetralhadoras custavam R$ 22 mil nesse comércio ilegal. Integrantes ou pessoas ligadas a pelo menos duas organizações criminosas - incluindo detentos do Estado - foram identificados e fazem parte do rol de denunciados à Justiça.

No inquérito policial, os delegados Cláudio Castro e Guilherme Caraciolo classificaram o esquema como uma “Black Friday”.

“O que podemos denotar é que ao longo de anos, em virtude da falta de controle e um software onde todo o acervo bélico da polícia pudesse ser relacionado, policiais que trabalhavam diretamente com o acervo, se aproveitaram da facilidade de acesso e falhas na segurança, e passaram a desviar armas, munições e acessórios, revendendo esse material de maneira indiscriminada para todo e qualquer tipo de criminoso, integrante ou não de organizações criminosas. Uma verdadeira ‘Black Friday’ de armas, munições e acessórios. Houve criminoso que comprou e houve criminoso que intermediou a venda, e assim os valores da comercialização foram sendo majorados e se disseminando a oferta e a procura”, descreveram em relatório.

Os acusados respondem por crimes como organização criminosa, comércio ilegal de armas de fogo, peculato, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva.

 

Comentários

Últimas notícias