Biografia

Wanderléa reveladora em autobiografia sem autocensura

Um beijo de Roberto Carlos no dia em que se conheceram

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 19/11/2017 às 5:47
foto: : Jairo Goldfluss/Divulgação
Um beijo de Roberto Carlos no dia em que se conheceram - FOTO: foto: : Jairo Goldfluss/Divulgação
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“Não suportei. Quando ela me fitou firme, lambendo maliciosamente os lábios, quase teve que engolir de novo a língua, tamanho o bofetão que lhe dei. O microfone reverberou o som do tapa. Houve um espanto geral da plateia, seguido de um curto silêncio. A sensação que tive ao dar as costas às moças e voltar ao palco era de que uma delas iria me puxar pelo cabelos e, fatalmente, a apresentação iria acabar”.

 O trecho acima não foi pinçado de um romance de tons fortes, mas da autobiografia de uma das cantoras mais conhecidas pela sua candura e gentileza. Até hoje, aos 72 anos, ela continua sendo chamada de “Ternurinha”, epíteto que ganhou na época do Jovem Guarda, programa que comandava com Roberto e Erasmo Carlos. É de Wanderléa, claro, da recém-lançada autobiografia  Foi assim (Record), assinada por ela (com pesquisa e edição de Renato Vieira).

 O episódio que abre este texto, aconteceu no Teatro Tereza Raquel, em Copacabana, durante uma apresentação do show Maravilhosa, 1972, título do álbum com que Wanderléa deu uma reviravolta na carreira e no estilo pelo qual tornou-se famosa. O tapa foi uma explosão de ira que não se imagina possa vir da Ternurinha.

 “Duas mulheres que estavam na primeira fila, evidentemente enamoradas, passaram o show me provocando”. Wanderléa conta que elas faziam muito barulhos, gestos obscenos. A gota d’água foi um “gostosa” gritado quando desceu até a plateia e aproximou-se do casal.

AQUELE BEIJO

 De volta ao passado, 1961. Wanderléa começou em programas infantis e foi contratada pela CBS quando tinha apenas dez anos, embora só fosse gravar aos 16 anos. Soube de uma caravana de artists, comandada pelo radialista Luiz de Carvalho, da Rádio Globo, na época um dos mais famosos do Rio, ao subúrbio de Cordovil, perto de onde morava. Foi ao local dos shows para se entrosar com os artistas, todos bem jovens. Foi atraída por um deles: “Empunhando um violão, ele chamou minha atenção de cara. Aparentava um semblante sereno, como se fosse um tanto solitário”. No final do show foi conversar com o cantor, ainda quase desconhecido, por coincidência contratado também da CBS. Seu nome era Roberto Carlos e estava lançando o LP de estreia, Louco por Você.

 Surgiu uma empatia imediata entre os dois. Enquanto os artistas acomodavam-se no ônibus que os levaria de volta, Wanderléa e Roberto Carlos conversavam. Quando o pessoal começou a reclamar, pedindo que ele fosse para o ônibus, os dois se despediram: “Ao estender-lhe a mão, fui surpreendida com um inesperado beijo na boca, com gosto da coxinha que ele comeu no lanche”, revela a cantora. Foi o seu primeiro beijo.

 Conheceria Erasmo Carlos dois anos mais tarde, quando já iniciara sua ascensão ao estrelato. Gravava rock ingênuo, mas já confrontando o chefão da CBS, no caso, o poderoso Evandro Ribeiro, que a colocou na geladeira, porque ela reclamou das canções que lhe davam pra gravar. Erasmo era “secretário” de Carlos Imperial, que apresentava Os Brotos Comandam, um dos programas de maior audiência entre a juventude carioca.

 O futuro Tremendão morava na Tijuca, perto da casa da avó de Wanderléa: “Um dia, voltando juntos de algum lugar para a casa da vovó, Erasmo colocou o braço em volta do meu ombro e me tascou um beijo na boca. Fui pega de surpresa e reagi àquela situação totalmente inesperada batendo no peito dele, revoltada”. O Tremendão tentaria quebrar a guarda da Ternurinha outras vezes, uma das mais ousadas aconteceu quando foram ao Japão filmar O Diamante Cor de Rosa, que tem ele, Wandeca e Roberto Carlos como protagonistas.

 Chegados em Tóquio, Erasmo conseguiu apanhar a chave do apartamento de Wanderléa. Quando ela entrou deparou-se com o Tremendão esperando-a em seu quarto de hotel, deitado sugestivamente na cama de casal. A autobiografia da Rainha da Jovem Guarda é muito mais reveladora do que a superficial biografia Minha Fama de Mau, de Erasmo Carlos (escrita com o jornalista Leonardo Lichote, que só foi até onde o biografado permitiu). Ela não hesita em contar detalhes circunscrito à família. Como por exemplo, já adulta, ser espancada pelo pai, que aceitou relutante que ela seguisse a carreira artística.

 TRAGÉDIAS

 Enquanto Roberto Carlos não supera a perda de parte de uma perna num acidente de trem, quando era garoto, e raramente toca no assunto, Wanderléa detalha a sucessão tragédias que pontua sua biografia, procurando superá-las cada vez que aconteciam. Primeiro foi a irmã mais velha, Leninha, atingida por uma bala perdida (em 1955, época em que projéteis deste tipo ainda eram raros no Rio), numa troca de tiros entre dois bandidos.

Anos mais tarde, José Renato, o Nanato, filho de Chacrinha, com quem estava prestes a se casar, sofreu um acidente numa piscina e ficou paraplégico (sofreria outro acidente grave de automóvel poucos anos depois, e Wanderléa estava com ele). “Foi quando vi nosso filho morto, em cima de uma maca, com seu pai chorando aos seus pés”, conta sobre a morte de Leonardo, o Léo.

 Na perigosa idade de dois anos e três meses, o primeiro filho da cantora com Lalo, um guitarrista chileno, driblou a vigilância dos que estavam em casa, foi para a piscina, caiu na água e morreu afogado. Por fim, Bill, irmão, produtor, figurinista de Wanderléa morreu em consequência do vírus HIV, sem contar incidentes como o roubo de todo equipamento do moderno estúdio que montou no Rio, e que nunca foi recuperado.

 TODOS COM W

 Wanderli, Wanderlã, Wanderley, Wanderlene, Wanderbele, Wanderléa, Wanderbil, Wanderte e Wanderlô. Seu Antonio Salim tinha uma queda pela letra “w”, mas não se importava muito com sobrenomes. O nome da filha mais famosa é Wanderléa Salim, nascida, em 5 de junho de 1946, por acaso, em Governador Valadares (MG), onde o pai trabalhava na época.

 Wanderléa era um nome estranho, por pouco não se chama Solange Maria, quando começou a gravar. Com o pouco comum nome de batismo, Wanderléa viveria três anos intensos, entre 1965 e 1968, tempo em que o programa Jovem Guarda foi ao ar. As revelações sobre esta época são muito poucas, nem ela parece muito interessada em estender sua passagem pelo iê-iê-iê, com carrões, fãs tresloucadas, ou a independência financeira aos 21 anos.

 A cantora está mais preocupada em contar sua vida a partir dos anos 70, quando lutou para se desvencilhar do estigma de intérprete de canções bobinhas, sem conteúdo, e ser aceita na MPB, o que acontece com o citado álbum Maravilhosa. Depois de cinco discos bem sucedidos, ela deixa a CBS, vai para a Phillips, gravando um repertório que tem de Jorge Mautner a sucessos de Carmem Miranda. Vendeu pouco mais lhe abriu as portas da MPB. O que foi reforçado com o relacionamento com Egberto Gismonti.

 Mas o sucesso nunca mais lhe veio com a mesma constância dos anos 60. Seus discos foram elogiados, realizados com grandes músicos, porém só voltaria a estourar, em 1981, com Mata-me Depressa. Presente do “maninho” Roberto Carlos que foi até a sua casa para lhe oferecer a música. Shows não lhe faltaram, mas chegou a passar onze anos sem lançar disco novo (de 1992 a 2003).

 Com duas filhas, um casamento estável, com Lalo (embora não morem juntos) e reflete: “Ainda sou uma criança. Quero fazer um disco de inéditas, o repertório está sendo montado... Pensando bem uma vida inteira não cabe num livro só. Acho que no próximo ainda terei muitas coisas para contar”, encerra o livro confirmando que continuará a publicar suas memórias.

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