PROSA

José Saramago fala sobre indústria de armas em obra inédita

Antes de morrer, o Nobel português começou a escrever o romance 'Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas', que sai agora pela Companhia das Letras

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 26/10/2014 às 5:27
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Antes de morrer, o Nobel português começou a escrever o romance 'Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas', que sai agora pela Companhia das Letras - FOTO: NE10
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“Afinal, talvez ainda vá escrever outro livro.” A anotação de 15 de agosto 2009 do escritor português José Saramago revelava a surpresa do único Nobel da Literatura da nossa língua em ser acometido por mais uma ideia para um narrativa. Aos 86 anos, ele havia lançado, fazia pouco tempo, seu último romance, Caim – mesmo convivendo com as fraquezas da velhice – , e não esperava encontrar tão rapidamente outra história. Obedecendo ao lampejo, deu início à narrativa, primeira intitulada de Belona, depois de Belona S.A. e Produtos Belona S.A. e, por fim, ganhando denominação definitiva: Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas, em referência a uma peça do compatriota Gil Vicente (1465-1536).

Saramago nunca terminou de escrever a história – precisou interrompê-la por conta das turnês de lançamento Caim. Também já não tinha momentos de tranquilidade para se dedicar a ela. Os dois capítulos concluídos, com pouco mais de 50 páginas, foram reunidos pela Companhia da Letras para serem lançados, agora como o registro desse romance inacabado. O volume é completado com as breves anotações do diário de escrita do autor e textos do biógrafo e escritor espanhol Fernando Gómez Aguilera, do cientista político fluminense Luiz Eduardo Soares e do escritor italiano Roberto Saviano. O grande destaque da edição são as expressivas ilustrações de Gunter Grass, poeta e artista plástico que já venceu o Nobel da Literatura, em 1999.

O próprio Saramago resume bem a sua motivação para criar a obra. “Uma velha preocupação minha (porquê nunca houve uma greve numa fábrica de armamento) deu pé a uma ideia complementar que, precisamente, permitirá o tratamento ficcional do tema. Não o esperava, mas aconteceu, aqui sentado, dando voltas à cabeça ou dando-me ela voltas a mim. (...) O gancho para arrancar com a história já o tenho e dele falei muitas vezes: aquela bomba que não chegou a explodir, na Guerra Civil de Espanha, como André Malraux conta em L’Espoir”, apontou, quando começou o romance.

Como costumam ser as obras póstumas incompletas – cada vez mais frequentes no mercado editorial –, há uma dose de frustração garantida ao ler-se Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas. A história é longa o suficiente para despertar a curiosidade do leitor, mas, por motivos óbvios, acaba justamente quando começaria a se desenrolar. Artur Paz Semedo, funcionário fiel da contabilidade da empresa Belona S.A., fica surpreso ao saber que, nos anos 1930, uma bomba não explodiu durante a Guerra Civil Espanhola. Provocado pela ex-mulher, uma pacifista que abandonou o marido por sua falta de posicionamento político, aceita, a contragosto, o desafio de tentar investigar o passado da própria empresa: Tenta descobrir se houve greves e repressões no passado. Essa trama, dentro do ambiente burocrático, até lembra um pouco o clima do excelente Todos os nomes, que o escritor publicou, em 1997, sobre um funcionário de cartório.

A prosa do Nobel português é afiada, claro. Quando Artur Paz Semedo chega aos arquivos da Belona, o narrador – sempre um dos motivos do sabor das histórias de Saramago – comenta: “A prudência manda que no passado só se deva tocar com pinças, e mesmo assim desinfetadas para evitar contágios”. Em outro momento, há um testemunho do seu cuidado com o que diz (ou escreve): quando o personagem pensa bem nas palavras que vai usar para se dirigir a um colega, diz o texto que “burilar a frase é o mais importante nas comunicações entre humanos”.

Os textos que acompanham a narrativa, na verdade, tentam dar um contexto à obra. Fernando Gómez Aguilera fala mais da vida de Saramago quando o escritor já percebia a morte perto e dizia se sentir como uma vela com chama mais forte, antes de se apagar. Luiz Eduardo Soares, especialista em segurança pública, aborda as relações entre literatura e realidade; Roberto Saviano produz um ensaio emocionante, que fala dos Artur Semedo que realmente existiram.

Apesar de bem cuidado, o volume não é nada mais que uma curiosidade. Não é como se a obra de Saramago fosse escassa ou se ele tivesse por muito tempo preparando uma narrativa, em silêncio. Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas revela só uma intenção e traz uma amostra saborosa, mas também cruel, do que ela seria. Há romances, contos e diários do escritor já lançados que bastam; só os mais ardorosos fãs vão realmente gostar essas páginas inacabadas.

Leia mais no Jornal do Commercio deste domingo (26/10).

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